quarta-feira, 18 de maio de 2016

O Estado Constitucional.

O Estado Constitucional, no sentido de Estado enquadrado num sistema normativo fundamental, é uma criação moderna, tendo surgido paralelamente ao Estado Democrático e, em parte, sob influência dos mesmos princípios. Os constitucionalistas, que estudam em profundidade o problema da origem das constituições, apontam manifestações esparsas, semelhantes, sob certos aspectos, às que se verificam no Estado Constitucional moderno, em alguns povos da Antigüidade. Assim é que LOEWENSTEIN sustenta que os hebreus foram os primeiros a praticar o constitucionalismo, enquanto que ANDRÉ HAURIOU é absolutamente categórico ao afirmar que "o berço do Direito Constitucional se encontra no Mediterrâneo oriental e, mais precisamente, na Grécia", havendo ainda quem dê primazia ao Egito. Entretanto, o próprio HAURIOU fala no "caráter ocidental do Direito Constitucional", explicando, como todos os que admitem o constitucionalismo na Antigüidade, que, com a queda de Roma, houve um hiato constitucional, que só iria terminar com o Estado moderno. Em conclusão, pois, o constitucionalismo, assim como a moderna democracia, tem suas raízes no desmoronamento do sistema político medieval, passando por uma fase de evolução que iria culminar no século XVIII, quando surgem os documentos legislativos a que se deu o nome de Constituição.


Em sentido geral, pode-se dizer que o constitucionalismo começou a nascer em 1215, quando os barões da Inglaterra obrigaram o Rei João Sem Terra a assinar a Magna Carta, jurando obedecêla e aceitando a limitação de seus poderes. Depois disso, ainda seriam necessários alguns séculos para que ocorressem avanços substanciais, o que se dará na própria Inglaterra, no século XVII, quando a Revolução Inglesa consagra a supremacia do Parlamento como órgão legislativo. Com isto se chega bem próximo da ideia de que o Estado deve ter "um governo de leis, não de homens".
Finalmente, no século XVIII, conjugam-se vários fatores que iriam determinar o aparecimento das Constituições e infundir-lhes as características fundamentais. Sob influência do jusnaturalismo, amplamente difundido pela obra dos contratualistas, afirma-se a superioridade do indivíduo, dotado de direitos naturais inalienáveis que deveriam receber a proteção do Estado. A par disso, desenvolve-se a luta contra o absolutismo dos monarcas, ganhando grande força os movimentos que preconizavam a limitação dos poderes dos governantes. Por último, ocorre ainda a influência considerável do Iluminismo, que levaria ao extremo a crença na Razão, refletindo-se nas relações políticas através da exigência de uma racionalização do poder.
Aí estão os três grandes objetivos, que, conjugados, iriam resultar no constitucionalismo: a afirmação da supremacia do
indivíduo, a necessidade de limitação do poder dos governantes e a crença quase religiosa nas virtudes da razão, apoiando a busca da racionalização do poder Este último objetivo, atuando como que um instrumento para criação das condições que permitissem a consecução dos demais, foi claramente manifestado pelos autores que mais de perto influíram na Revolução Francesa. E assim como ocorrera com a idéia de democracia, também a de Constituição teve mais universalidade na França, de lá se expandindo para outras partes do mundo, justamente porque apoiada na razão, que é comum a todos os povos, mais do que em circunstâncias peculiares ao lugar e à época. Com efeito, embora a primeira Constituição escrita tenha sido a do Estado de Virgínia, de 1776, e a primeira posta em prática tenha sido a dos Estados Unidos da América, de 1787, foi a francesa, de 1789, que teve maior
repercussão.
Nos Estados Unidos da América também se conjugaram aqueles objetivos fundamentais há pouco referidos, que conformaram o constitucionalismo. Os autores franceses influíram sobre a Revolução Americana, que também aderiu ao culto da razão. Assim, observa CORWIN que, para os americanos, embora muito menos que para os franceses, o período da Constituição foi uma era de racionalismo, pelo que se deve entender não uma cega ignorância das lições da experiência, mas a confiança na habilidade da razão, atuando à luz da experiência, para desviar o curso irracional dos acontecimentos para canais benéficos. Ainda segundo CORWIN, a nenhum respeito, naquela época, o homem foi mais senhor de seu destino do que no tocante à habilidade
política, parecendo-lhe importante ressaltar que o Estado norte-americano não foi fundado numa era de ignorância e superstição.
Ao contrário disso, nasceu numa época em que os direitos do ser humano eram melhor compreendidos e mais claramente definidos do que em qualquer outro período. Não há dúvida, portanto, de que estiveram presentes os mesmos fatores de influência que determinaram a conformação básica do constitucionalismo francês, embora neste tenha sido mais acentuado o caráter racionalista, que lhe infundiu universalidade.
Pelos próprios objetivos fundamentais propostos é fácil perceber que o constitucionalismo teve, quase sempre, um caráter revolucionário. Com efeito, a limitação dos poderes dos monarcas sempre se faria, como de fato ocorreu, contra a vontade destes, e se eles aceitaram as restrições isto deveu-se às fortes pressões exercidas pelas novas classes políticas, sobretudo pela burguesia. E, como é evidente, as mesmas forças que haviam conseguido impor restrições aos monarcas iriam valer-se da oportunidade para afirmar seus direitos e assegurar a permanência da situação de poder a que haviam chegado. Daí a preferência pelas Constituições escritas, que definiam melhor as novas condições políticas, ao mesmo tempo em que tornavam muito mais difícil qualquer retrocesso.
É preciso ter em conta, porém, que o constitucionalismo, apesar de impulsionado sempre pelos mesmos objetivos básicos, teve características diversificadas, segundo as circunstâncias de cada Estado. Com efeito, surgindo num momento em que a doutrina econômica predominante era o liberalismo, incorporou-se o constitucionalismo ao acervo de idéias que iriam configurar o liberalismo político. Este, por sua vez, expandiu-se como ponto de convergência das lutas a favor dos direitos e da liberdade do indivíduo. Dessa forma, em alguns Estados o constitucionalismo foi o instrumento de afirmação política de novas classes econômicas, enquanto que, em outros, foi a mera expressão de anseios intelectuais, nascidos de um romantismo político sem
caráter utilitarista. Naqueles, em conseqüência, o constitucionalismo teve caráter verdadeiramente revolucionário, consagrando mudanças estruturais e implicando limitações ao governo e ao Estado. Nos demais teve um sentido quase simbólico, gerando as monarquias constitucionais, cujo absolutismo perdeu o caráter pessoal para adquirir um fundamento legal.
A possibilidade de preservação de sistemas substancialmente absolutistas, apesar da Constituição, deveu-se a um desdobramento do próprio conceito de Constituição que permite distinguir entre um sentido material e um sentido formal.
Quando se busca a identificação da Constituição através do seu conteúdo material deve-se procurar sua própria substância, aquilo que está consagrado nela como expressão dos valores de convivência e dos fatos prováveis do povo a que ela se liga. LOEWENSTEIN faz uma enumeração dos requisitos mínimos de uma Constituição autêntica, indicando, em síntese, os seguintes:
a) a diferenciação das diversas tarefas estatais e sua atribuição a diferentes órgãos ou detentores do poder, para evitar a concentração do poder nas mãos de um só indivíduo;
b) um mecanismo planejado, que estabeleça a cooperação dos diversos detentores do poder, significando, ao mesmo tempo, uma limitação e uma distribuição do exercício do poder;
c) um mecanismo, planejado também com antecipação, para evitar bloqueios respectivos entre os diferentes detentores de parcelas autônomas do poder, a fim de evitar que qualquer deles, numa hipótese de conflito, resolva o embaraço sobrepondo-se aos demais;
d) um mecanismo, também previamente planejado, para adaptação pacífica da ordem fundamental às mutáveis condições sociais e políticas, ou seja, um método racional de reforma constitucional para evitar o recurso a ilegalidade, à força ou à revolução;
e) além disso tudo, a Constituição deve conter o reconhecimento expresso de certas esferas de autodeterminação individual, isto é, dos direitos individuais e das liberdades fundamentais, prevendo sua proteção contra a interferência de um ou de todos os detentores do poder.
Quando se trata da Constituição em sentido formal, tem-se a lei fundamental de um povo, ou o conjunto de regras jurídicas dotadas de máxima eficácia, concernentes à organização e ao funcionamento do Estado. Essa diferenciação entre os sentidos material e formal é de bastante utilidade para a aferição da autenticidade da Constituição. De fato, aquele mesmo formalismo que tomou possíveis as monarquias constitucionais absolutistas encontra-se, atualmente, na base das chamadas ditaduras constitucionais. Em princípio esta expressão é contraditória. Todavia, como a Constituição nasceu com a mística da limitação do poder e afirmação das liberdades individuais, as ditaduras procuram criar uma aparência de legitimidade, disfarçando
o seu verdadeiro caráter, apoiando-se numa Constituição. Mas por sua própria natureza só podem atender aos requisitos formais, faltando ao documento a que dão o nome de Constituição os requisitos materiais que comprovariam sua autenticidade.
É curioso assinalar que, embora tratando da autenticidade constitucional sob uma perspectiva técnico-formal, KELSEN chega a uma conclusão semelhante. Seu ponto de partida é uma norma fundamental hipotética, que é um ponto nebuloso de sua teoria e que os comentadores entendem que deva ser identificada como a própria idéia de justiça. Com base naquela norma fundamental hipotética os membros do povo selecionam as normas de comportamento social que consideram fundamentais. Essas normas, que existem na consciência das pessoas, formam uma primeira Constituição, que é chamada abstrata ou teórica, porque ainda não se externou como norma jurídica. Num terceiro momento, pelos meios próprios que são os órgãos reconhecidos pelo direito, aquelas normas são expressadas como regras jurídicas fundamentais, tendo-se então a Constituição positiva. Como se vê, existe aí também um critério para aferição de legitimidade, que impõe o confronto entre aquilo que foi positivado, ou seja, que tem a forma de Constituição, e o que existe na consciência do povo, decorrendo da norma fundamental hipotética, que é, em última análise, o conteúdo material da Constituição.
Da própria noção de Constituição, resultante da conjugação dos sentidos material e formal, resulta que o titular do poder constituinte é sempre o povo. É nele que se encontram os valores fundamentais que informam os comportamentos sociais, sendo, portanto, ilegítima a Constituição que reflete os valores e as aspirações de um indivíduo ou de um grupo e não do povo a que a Constituição se vincula. A Constituição autêntica será sempre uma conjugação de valores individuais e valores sociais, que o próprio povo selecionou através da experiência.
Mas, tendo sido a Constituição uma criação do século XVIII e expressão das aspirações daquele século, poderá ser ainda um instrumento válido para a limitação do poder e a afirmação eficaz dos direitos individuais? Na verdade, a Constituição, que até há poucos anos gozava de extraordinária autoridade como a mais alta expressão de afirmação democrática e legislativa, perdeu muito de seu prestígio. Isto se deve, porém, a vários fatores anômalos. Entre estes se acha a mais intensa solicitação de participação do Estado na vida social, obrigando a uma ação mais eficaz, dinâmica e autoritária, rompendo-se, em grande parte, as barreiras anteriormente opostas pelos direitos individuais. Por outro lado, os próprios indivíduos e os grupos sociais, com muita freqüência, esperam e até mesmo exigem a participação mais ampla e mais intensa do Estado, estimulando com tal atitude o seu crescimento, mesmo à margem da ordem constitucional. Por último, o autoritarismo crescente do Estado não vem encontrando resistências significativas, nem mesmo por parte dos juristas, uma vez que a ênfase posta no desenvolvimento econômico faz parecerem antiquadas e formalistas, até mesmo ridículas e antisociais, as preocupações que, aparentemente, são manifestações de exagerado apego a requisitos formais.
Na verdade, entretanto, não desapareceu a necessidade de impor limitações ao poder para proteção dos valores fundamentais do indivíduo. Ainda que se considere superada, como de fato se deve considerar, a concepção ultra-individualista de direito e liberdade, criada pelo liberalismo e utilizada para sustentar privilégios, o indivíduo continua a ser a base da vida social, devendo-se proceder à conjugação dos valores individuais e sociais e promovê-los adequadamente. E para a proteção e a promoção dos valores fundamentais de convivência é indispensável o Estado Democrático, que impõe a observância de padrões jurídicos básicos, nascidos da própria realidade.
Não está, portanto, superada a necessidade de se preservar a supremacia da Constituição, como padrão jurídico fundamental e que não pode ser contrariado por qualquer norma integrante do mesmo sistema jurídico. As normas constitucionais, em qualquer sistema regular, são as que têm o máximo de eficácia, não sendo admissível a existência, no mesmo Estado, de normas que com elas concorram em eficácia ou que lhes sejam superiores. Atuando como padrão jurídico fundamental, que se impõe ao Estado, aos governantes e aos governados, as normas constitucionais condicionam todo o sistema jurídico, daí resultando a exigência absoluta de que lhes sejam conformes todos os atos que pretendam produzir efeitos jurídicos dentro do sistema.

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